Por Ivan Gomes
O professor e filósofo brasileiro Mario Sergio Cortella, em
uma de suas palestras, citou um trecho do livro do Apocalipse, da Bíblia, que
diz: “Deus vomitará os mornos, pois não é quente nem frio...” Quando pensei no
texto para esta edição da Raro Zine, essa fala veio imediatamente em minha
mente, pois nas palavras que virão, irei abordar o encontro da Filosofia
Existencialista, principalmente de Sartre e Camus, com músicas influenciadas
nas obras de Bob Dylan e da Jovem Guarda.
O encontro inusitado ocorreu no disco lançado em 1987 pela
banda gaúcha Engenheiros do Hawaii, o segundo trabalho de estúdio dos caras,
denominado “A Revolta dos Dândis”. Importante destacar que os gaúchos formaram
uma das bandas mais odiadas e amadas do país, por isso a lembrança da fala do
Cortella mencionada no início do texto.
“A Revolta dos Dândis” é o nome de um dos capítulos do livro
“O Homem Revoltado”, escrito pelo filósofo franco-argelino Albert Camus.
Segundo Humberto Gessinger, letrista dos Engenheiros do Hawaii, o disco era
para levar o nome de “Facel Vega”, nome do veículo no qual Camus era passageiro
quando se acidentou e morreu em decorrência da gravidade dos ferimentos.
Além da citação do capítulo da obra de Camus no nome do
disco, “A Revolta dos Dândis” serviu de inspiração para duas músicas, divididas
em parte 1 e 2. À época do vinil, as faixas abriam os respectivos lados. As
letras, tanto da parte 1 quanto da 2 estão recheadas de ideias baseadas em
obras de Camus e do filósofo francês Jean Paul Sartre.
No refrão da faixa de abertura, Humberto canta: “eu me sinto
um estrangeiro, passageiro de algum trem, que não passa por aqui, que não passa
de ilusão...” O refrão faz clara referência a outra obra de Camus, “O
Estrangeiro”. Nesta obra, a personagem principal apresentada por Camus é
Meursault, alguém que é indiferente a tudo e a todo momento, para várias
situações, diz “tanto faz”. Mas, a vida sempre nos coloca em situações de
escolha e uma das principais teses do existencialismo é a angústia que sentimos
em relação a isso, não há como viver sem escolher, o fato de não escolhermos
entre um e outro é uma escolha.
Ainda sobre o refrão é possível notar a influência de Sartre
que diz que a existência precede a essência e com isso somos lançados no mundo,
um mundo que existe há muito tempo antes de nossa chegada e que tem suas
próprias regras. Neste mundo, há escolhas e a partir daí podemos nos sentir um
estrangeiro, como Meursault, que fica indiferente e não dá a mínima às
escolhas.
O sentimento de ser algo que não se encaixa pode ser “o
estrangeiro, passageiro de algum trem”, um trem que é uma mera metáfora do que
é a vida, uma vida que não passa por ele, pois é indiferente às escolhas, uma
vida que não passa de ilusão. A ilusão citada na canção pode ser uma fuga de
responsabilidades. Algo que não se encaixa no pensamento existencialista.
A vida é a todo momento uma escolha, gera angústia e a
pressão de escolha constante, para algumas pessoas, faz com que elas busquem
possível fuga de uma realidade que não foi engendrada por nós. Em apenas uma
canção, há toda uma carga existencialista que pode ser trabalhada, refletida e
gerar ainda mais angústia.
E a angústia trazida pelo compositor fica na frase: “entre
americanos e soviéticos, gregos e troianos, entra ano e sai ano, sempre os
mesmos planos. Entre a minha boca e a tua, há tanto tempo, há tantos planos, mas
eu nunca sei pra onde vamos...”
Toda essa angústia é cantada de maneira arrastada com uma
melodia marcada por violão e gaita, com imensa influência de Bob Dylan. A
música ainda tem baixo e bateria nas marcações, mas ela segue arrastada do
início ao fim, que cria todo clima denso para o pensamento existencialista.
JOVEM GUARDA
Com uma abertura de disco que remetia ao folk dos anos 60,
do século passado, algo que ia totalmente na contramão do que outras bandas
brasileiras faziam à época, pois os Titãs lançaram, em 1986, o “Cabeça
Dinossauro”, o Camisa de Vênus eram tidos como punks, os Paralamas iniciavam
flerte com estilos influenciados por música latino-americana. O RPM era a banda
que mais utilizava da tecnologia e os Ratos iniciavam uma busca por um som cada
vez com mais peso e distorção.
Como estavam totalmente na contramão e ninguém na gravadora
botava fé nos Engenheiros, os caras aproveitaram para fazer o que estavam a fim
no segundo disco. Se na abertura havia influência de Dylan, na canção “Infinita
Highway”, uma das mais conhecidas da banda, mesmo com quase sete minutos,
Gessinger seguiu com a influência existencialista para a letra, mas o som veio
calmo e com guitarras limpas, como muitas bandas, ou conjuntos, da Jovem Guarda
faziam.
Em um trecho da canção Gessinger diz: “mas não precisamos
saber pra onde vamos, nós só precisamos ir, não queremos ter o que não temos,
nós só queremos viver... Sem motivos, nem objetivos. Estamos vivos e isto é
tudo.”
O ser humano é isso, não podemos deixar a vida nos levar
como queria a personagem de Camus, precisamos seguir o caminho, escuro,
deserto, sem saber onde iremos chegar. A única certeza que temos é que somos
finitos, mas enquanto estamos aqui precisamos seguir, mesmo sem saber para onde
ir.
Ainda neste raciocínio, quanto mais nos fazemos, tomamos a
consciência de que não temos motivos para estarmos aqui, nada é
pré-determinado, nossa essência é engendrada a partir da existência e das
escolhas, sem motivos e nem objetivos, fomos lançados ao mundo e estamos
sujeitos a tudo, estamos vivos, não sabemos por qual razão, mas temos um caminho
a seguir.
O texto acima traz pequenos trechos de somente duas canções.
Ao todo são 11 faixas que percorrem a sonoridade sessentista, o folk de Dylan,
as guitarras limpas da Jovem Guarda e toda angústia existencialista. Mesmo que
você odeie a banda, como a maioria, é interessante um dia sentar-se e ler as
letras.
Para encerrar, ao contrário de mais de 90% das pessoas que
estudam Filosofia e buscam o estudo por influência de algum dos grandes
pensadores, eu fiz o caminho contrário. A música além de me levar ao
jornalismo, ao ouvir “A Revolta dos Dândis” fui levado a conhecer Sartre e
Camus. Após contato com as obras desses pensadores, é que fui conhecer a
Filosofia. Por isso que às vezes, sempre, me sinto “um estrangeiro passageiro
de algum trem.”
Ivan Gomes é produtor e apresentador do programa A Hora
do Canibal pela Mutante Rádio e às vezes participa de rodas de Filosofia em
escolas por aí.