domingo, 11 de outubro de 2020

A história que a ‘escola’ não conta


Um dos temas mais discutidos em nosso país atualmente é a questão das escolas e da educação. A pandemia que nos afeta há alguns meses mudou drasticamente a rotina de todos nós. Infelizmente muita gente morreu e uma parte não apenas devido às complicações da doença, mas pela falta de estrutura de nosso sistema de saúde. E saúde tem tudo a ver com educação. E aí você pode se perguntar: por que devo ler isso em uma revista musical? Pois agora vamos entrar no quesito música!

Em algumas conversas recentes com amigos e com minha própria companheira, sempre comento que aprendi mais sobre história e geografia com discos de rock, ou com futebol, do que nos vários anos que passei sentado em alguma cadeira dentro de uma sala de aula. Mas isso não ocorreu por problemas com os professores, mas sim pelo próprio sistema educacional que não permite que nós pensemos sobre os assuntos.

Esse tema é abordado por Mao, vocalista e letrista da banda Garotos Podres, no segundo álbum da banda, lançado em 1988, denominado “Pior que antes”. Em uma das faixas, “Escolas”, Mao traz toda essa revolta e como o sistema não servia para que pensássemos e sim apenas fôssemos massacrados. “Nas escolas, onde a cultura é inútil, nos ensinam apenas a sentar e calar a boca”. Infelizmente, quem trabalha com educação sabe que mesmo 32 anos depois dessa música, o sistema continua o mesmo.

Em outra parte da letra, Mao diz que nas “escolas você aprende que seu destino já está traçado, pois querem os transformar em cordeirinhos domesticados, prontos para serem transformados em operários escravizados.”

Na escola não aprendemos que vivemos em nichos, que existe muito ódio, preconceito entre tantos outros problemas em nossa sociedade. Nas escolas recebemos apenas informações que podem ser úteis para que consigamos alguma colocação no mercado de trabalho, mas não nos ensina a importância de nos sindicalizarmos, o quão é importante contestar ordens obsoletas e não nos submetermos a mandos e desmandos de patrões e chefes. Como diz a canção, nas escolas somos apenas domesticados.

No trecho final da música, Mao deixa a domesticação explícita: “Me mandaram à escola para me dominar, me mandaram à escola para me manipular, me mandaram à escola para me escravizar, me mandaram à escola para me domar”. Fizeram isso com nossos pais, conosco e provavelmente fazem isso com nossos filhos.

E ainda neste álbum, Mao vai lidar com a questão do governo, o fato de não gostar do governo e à época do lançamento do disco à frente da presidência estava José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, o José Sarney. “Eu não gosto do governo, não confio no presidente, eu não acredito na ‘Ordem e Progresso’”. A faixa de abertura é um soco no estômago e isso não nos é ensinado nas escolas. O quanto um governo pode ser nefasto para uma população. Atualmente temos um grande exemplo.

Questionar autoridades é algo que não aprendi nas escolas, aprendi com os discos de rock, punk, principalmente com este disco dos Garotos. Pensei que ao invés de nos obrigarem a cantar o famigerado “hino nacional” antes da entrada para as aulas, deveríamos cantar este hino a plenos pulmões, principalmente o segundo trecho: “mas ninguém pode me censurar, pois não sou obrigado a gostar, confiar e acreditar em nada deste mundo.” A educação deveria ser emancipadora, não essa prisão sem grades, uma prisão ideológica, que nos vende a imagem de falsos heróis.

Nas escolas quase nunca falamos ou debatemos sobre a ditadura militar, ou cívico-militar, pois uma parte da sociedade defendeu essa aberração e ainda no final da segunda década do século XXI há ainda quem acredite que homens de fardas e coturnos têm alguma capacidade para administrar um país. Tem gente que não aprendeu o mínimo que a escola oferece e nem aquilo que os discos e bandas ofertam. Pensar não é algo que faça parte da escola.

Toquei no assunto da ditadura pois, na segunda faixa do disco, Mao canta “não queremos anistia aos torturadores, não queremos que os assassinos fiquem impunes. Amordaçaram e torturaram toda uma nação, nos deixaram órfãos de uma mãe pátria”.

Em 1988, quando os Garotos lançaram o “Pior que Antes”, também foi promulgada a Constituição vigente até os dias atuais. Inclusive, o disco foi lançado pouco depois, caso contrário, o disco não poderia conter a faixa “Batman”, a última canção censurada no país. Foi com a Constituição que o país recuperou a liberdade de expressão.

Volto, neste parágrafo, à questão da música “Anistia?”. Quando chegou ao final da ditadura e houve o período de redemocratização, o Brasil não “acertou as contas” com o passado. Pensamos que uma nova lei resolveria todos os nossos problemas. A desgraça da ditadura não foi condenada, ela apenas foi deixada de lado e atualmente vemos os muitos fantasmas que nos cobram. Não conhecer nossa própria história, não fazer os acertos custa caro e pagamos o preço atualmente. Os Garotos cantaram a bola, poucos ouviram, a maioria fez ouvidos moucos. Enquanto isso, na Argentina, nossos vizinhos, as pessoas que participaram da ditadura pagam um alto preço. Houve condenações para que servisse de exemplo e para mostrar quão nefasta é uma ditadura.

Também foi nesse disco que aprendemos sobre como é ser suburbano, ou da periferia. Em “Subúrbio Operário” Mao fala sobre alguém que nasce em um destes lugares espalhados pelo país. “Nasceu no subúrbio operário de um país subdesenvolvido, apenas parte da massa de uma sociedade falida. Submisso a leis injustas que os fazem calar. Manipulam seu pensamento e o impedem de pensar”. Esse trecho inicial nos remete novamente à escola e também à música “Escolas”. Afinal, ele fala novamente sobre manipulação, sem direito a pensar... algo que nos faz falta para construirmos uma sociedade com menos desigualdade e com oportunidades para que as pessoas consigam desenvolver seus potenciais.

Ainda nesta canção, em sua parte final, uma das melhores lições que os Garotos poderiam nos deixar: “Sem esperança de uma vida melhor, pois os parasitas sugam seu suor. Sobrevivendo das migalhas que caem das mesas, dos donos do papel, dos donos do papel.” Nós vamos à escola sem saber o porquê, somos manipulados, vendemos nossa força de trabalho em troca de migalhas... Mas isso não nos é ensinado. Nos vendem a ilusão de que “seremos alguém”, mas os papéis sempre tiveram donos, isso não nos é mostrado. Somos adestrados a engolir as migalhas, sem reclamar, com sorriso no rosto e gratidão a alguma divindade.

Em uma outra faixa, “Caminhando para o nada”, Mao fala sobre uma pessoa que sai apressada para o trabalho, geralmente em meio a uma multidão desesperada enquanto “os donos do capital manobram a economia, saqueando a sua vida e promovendo a miséria geral.” Esta letra poderia muito bem ter sido escrita no momento atual, afinal, o que vimos durante a quarentena? Pessoas desesperadas. Quantos pseudo burgueses saíram às ruas para pedir “a volta da economia” e reabertura de indústrias e comércios não essenciais? Isso também é o reflexo da falta de uma educação emancipatória. Novamente Mao mostra o quanto a escola nos doma, nos domestica. Aceitamos pós-verdades de um lado e de outro sem nos questionarmos. Ainda há uma parte da população que crê em “salvadores da pátria”. Enquanto muita gente segue “caminhando para o nada”, o pequeno grupo que realmente lucra, com risos e lágrimas, seguiu a observar o crescimento de seus números através das telas de seus celulares.

Ainda sobre história, na penúltima canção do CD, “Não questione”, Mao escreve sobre uma criança que passou toda a infância a fim de fazer perguntas sobre se era obrigada a aceitar tudo que lhe é imposto. “Papai mandava ouvir o padre, que mandava ler o livro, que mandava não questionar, nunca, jamais, o padre e o papai.” É com isso que somos obrigados a lidar, não podemos questionar. A escola reprimiu e ainda reprime quando o questionamento tem base. Mas não aprendemos a questionar na escola.

Além de história, com o Garotos também podemos aprender um pouco de Sociologia. A última música do disco “Garoto Podre” traz a história que até hoje acompanhamos os relatos aos montes. O início da música nos traz a referência de que quem vive do outro lado do muro nunca saberá o que ocorre no subúrbio.

A educação que não nos liberta, ao contrário, nos aprisiona, não nos diz que quando conseguirmos um emprego não teremos dignidade. Não aprendemos que quando estamos desempregados, seremos taxados de vagabundos e se formos à greve seremos chamados de subversivos. Mas os Garotos nos ensinaram e ainda ensinam. “Mas se arrumar emprego não lhes dão a dignidade, apesar do sujo macacão e do rosto suado.”

Algumas das canções relatadas neste texto nos ensinam que precisamos questionar sempre, mas com base e conhecimento. Conhecimento não conseguiremos nas escolas, mas precisamos frequentá-las para termos o direito de nos insurgir e tecer as críticas necessárias a esse sistema que até hoje nos manipula e não passa de um verdadeiro faz de conta. Aprendemos que o mundo tem alguns donos, que somos obrigados a viver de migalhas e que não gostar do governo, qualquer governo, é essencial.