segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

O encontro da Filosofia Existencialista com Bob Dylan e a Jovem Guarda


Por Ivan Gomes

O professor e filósofo brasileiro Mario Sergio Cortella, em uma de suas palestras, citou um trecho do livro do Apocalipse, da Bíblia, que diz: “Deus vomitará os mornos, pois não é quente nem frio...” Quando pensei no texto para esta edição da Raro Zine, essa fala veio imediatamente em minha mente, pois nas palavras que virão, irei abordar o encontro da Filosofia Existencialista, principalmente de Sartre e Camus, com músicas influenciadas nas obras de Bob Dylan e da Jovem Guarda.

O encontro inusitado ocorreu no disco lançado em 1987 pela banda gaúcha Engenheiros do Hawaii, o segundo trabalho de estúdio dos caras, denominado “A Revolta dos Dândis”. Importante destacar que os gaúchos formaram uma das bandas mais odiadas e amadas do país, por isso a lembrança da fala do Cortella mencionada no início do texto.

“A Revolta dos Dândis” é o nome de um dos capítulos do livro “O Homem Revoltado”, escrito pelo filósofo franco-argelino Albert Camus. Segundo Humberto Gessinger, letrista dos Engenheiros do Hawaii, o disco era para levar o nome de “Facel Vega”, nome do veículo no qual Camus era passageiro quando se acidentou e morreu em decorrência da gravidade dos ferimentos.

Além da citação do capítulo da obra de Camus no nome do disco, “A Revolta dos Dândis” serviu de inspiração para duas músicas, divididas em parte 1 e 2. À época do vinil, as faixas abriam os respectivos lados. As letras, tanto da parte 1 quanto da 2 estão recheadas de ideias baseadas em obras de Camus e do filósofo francês Jean Paul Sartre.

No refrão da faixa de abertura, Humberto canta: “eu me sinto um estrangeiro, passageiro de algum trem, que não passa por aqui, que não passa de ilusão...” O refrão faz clara referência a outra obra de Camus, “O Estrangeiro”. Nesta obra, a personagem principal apresentada por Camus é Meursault, alguém que é indiferente a tudo e a todo momento, para várias situações, diz “tanto faz”. Mas, a vida sempre nos coloca em situações de escolha e uma das principais teses do existencialismo é a angústia que sentimos em relação a isso, não há como viver sem escolher, o fato de não escolhermos entre um e outro é uma escolha.    

Ainda sobre o refrão é possível notar a influência de Sartre que diz que a existência precede a essência e com isso somos lançados no mundo, um mundo que existe há muito tempo antes de nossa chegada e que tem suas próprias regras. Neste mundo, há escolhas e a partir daí podemos nos sentir um estrangeiro, como Meursault, que fica indiferente e não dá a mínima às escolhas.

O sentimento de ser algo que não se encaixa pode ser “o estrangeiro, passageiro de algum trem”, um trem que é uma mera metáfora do que é a vida, uma vida que não passa por ele, pois é indiferente às escolhas, uma vida que não passa de ilusão. A ilusão citada na canção pode ser uma fuga de responsabilidades. Algo que não se encaixa no pensamento existencialista.

A vida é a todo momento uma escolha, gera angústia e a pressão de escolha constante, para algumas pessoas, faz com que elas busquem possível fuga de uma realidade que não foi engendrada por nós. Em apenas uma canção, há toda uma carga existencialista que pode ser trabalhada, refletida e gerar ainda mais angústia. 

E a angústia trazida pelo compositor fica na frase: “entre americanos e soviéticos, gregos e troianos, entra ano e sai ano, sempre os mesmos planos. Entre a minha boca e a tua, há tanto tempo, há tantos planos, mas eu nunca sei pra onde vamos...”

Toda essa angústia é cantada de maneira arrastada com uma melodia marcada por violão e gaita, com imensa influência de Bob Dylan. A música ainda tem baixo e bateria nas marcações, mas ela segue arrastada do início ao fim, que cria todo clima denso para o pensamento existencialista.

JOVEM GUARDA

Com uma abertura de disco que remetia ao folk dos anos 60, do século passado, algo que ia totalmente na contramão do que outras bandas brasileiras faziam à época, pois os Titãs lançaram, em 1986, o “Cabeça Dinossauro”, o Camisa de Vênus eram tidos como punks, os Paralamas iniciavam flerte com estilos influenciados por música latino-americana. O RPM era a banda que mais utilizava da tecnologia e os Ratos iniciavam uma busca por um som cada vez com mais peso e distorção.

Como estavam totalmente na contramão e ninguém na gravadora botava fé nos Engenheiros, os caras aproveitaram para fazer o que estavam a fim no segundo disco. Se na abertura havia influência de Dylan, na canção “Infinita Highway”, uma das mais conhecidas da banda, mesmo com quase sete minutos, Gessinger seguiu com a influência existencialista para a letra, mas o som veio calmo e com guitarras limpas, como muitas bandas, ou conjuntos, da Jovem Guarda faziam.

Em um trecho da canção Gessinger diz: “mas não precisamos saber pra onde vamos, nós só precisamos ir, não queremos ter o que não temos, nós só queremos viver... Sem motivos, nem objetivos. Estamos vivos e isto é tudo.”

O ser humano é isso, não podemos deixar a vida nos levar como queria a personagem de Camus, precisamos seguir o caminho, escuro, deserto, sem saber onde iremos chegar. A única certeza que temos é que somos finitos, mas enquanto estamos aqui precisamos seguir, mesmo sem saber para onde ir.

Ainda neste raciocínio, quanto mais nos fazemos, tomamos a consciência de que não temos motivos para estarmos aqui, nada é pré-determinado, nossa essência é engendrada a partir da existência e das escolhas, sem motivos e nem objetivos, fomos lançados ao mundo e estamos sujeitos a tudo, estamos vivos, não sabemos por qual razão, mas temos um caminho a seguir.    

O texto acima traz pequenos trechos de somente duas canções. Ao todo são 11 faixas que percorrem a sonoridade sessentista, o folk de Dylan, as guitarras limpas da Jovem Guarda e toda angústia existencialista. Mesmo que você odeie a banda, como a maioria, é interessante um dia sentar-se e ler as letras.

Para encerrar, ao contrário de mais de 90% das pessoas que estudam Filosofia e buscam o estudo por influência de algum dos grandes pensadores, eu fiz o caminho contrário. A música além de me levar ao jornalismo, ao ouvir “A Revolta dos Dândis” fui levado a conhecer Sartre e Camus. Após contato com as obras desses pensadores, é que fui conhecer a Filosofia. Por isso que às vezes, sempre, me sinto “um estrangeiro passageiro de algum trem.”

Ivan Gomes é produtor e apresentador do programa A Hora do Canibal pela Mutante Rádio e às vezes participa de rodas de Filosofia em escolas por aí.